Quando aparece um nome novo
ou uma variedade nova de fruta, a minha curiosidade desperta, Há muito tempo
que as laranjas de Loje me intrigavam (canção de Fausto que musicava um poema
de Viriato da Cruz ). Esta crónica tirou-me as dúvidas.
[…]e dando calor ao sumo das mangas.
sua pele macia - era sumaúma...
Sua pele macia, da cor do jambo,
cheirando a rosas
tão rijo e tão doce - como o maboque...
Seu seios laranjas - laranjas do
Loge
seus dentes... - marfim...[…]
Mandei-lhe uma carta
Viriato da Cruz -No reino de
Caliban II
Antologia panorâmica de poesia africana de expressão portuguesa
Antologia panorâmica de poesia africana de expressão portuguesa
Cantado por Fausto
DN Noticias Magazine [Publicado originalmente na edição
de 13 de novembro de 2016]
Começo
a ter idade que me faz lembrar agradecimentos que nunca dei. À laranja, por
exemplo e evidentemente. Primeiro, foi-me um pregão: «Laraaaanja, doce!»
Passava na minha rua à cabeça da quitandeira. Esta, chamada pela minha mãe,
desenrolava da cintura o primeiro dos panos, o que lhe permitia dobrar-se,
pousava o cesto – as mais pobres, o alguidar com o esmalte a desaparecer – e
punha de lado o lenço em rodilha que amortecia o peso da fruta. «Dois
angolares», anunciava, sem dizer a quantidade, a discussão era para depois. As
minhas laranjas eram sempre amarelas, douradas.
As
laranjas eram do Loge. Cheguei a pensar serem duma fazenda centenária, a norte
de Luanda, na curva do rio Loge, ao chegar a Ambriz, na costa. O meu pai, por
razões que esqueci, num dia levou-me de camião mais longe do que os cem
quilómetros habituais das excursões de cacimbo, nas férias. O Bedford passou
Quicabo, uma rua do faroeste, onde tudo, da bomba de gasolina à pensão, era de
um compadre transmontano, e continuámos até um rio. Na outra margem vi
sobrados, com telhados de quatro águas e janelas debruadas a azul-cobalto: «A
Fazenda do Loge», apontou o meu pai. Ficou o lugar das laranjas, embora não
tenha visto nenhuma. E devia: elas amadurecem no tempo frio, no cacimbo.
Mais
tarde soube que afinal elas vinham do colonato do Loge, num vale do interior,
tão longe do Ambriz como Luanda. No colonato havia brancos pobres e negros mais
pobres. Estes eram tocoístas, uma igreja cristã que em 1950 fora expulsa da
capital do Congo, Leopoldville. Esperavam pelo messias e faziam lenços brancos
bordados em ponto cruz. Nos fins da década de 1950, cultivavam as minhas
laranjas e deviam ser felizes. Na internet, ainda há uma «Maria José», branca,
que pergunta ao mundo «lembram-se de mim?» e há uma tocoísta que fala dos
lenços brancos. Não sei se se conheceram. As aldeias desapareceram em 1961,
quando começou a guerra. E os laranjais também.
Os
portugueses conhecem, pela voz de Sérgio Godinho, uma das mais belas canções de
amor na nossa língua: «(…) seus seios laranja/ laranja do Loge/ eu mandei-lhe
essa carta/ e ela disse que não…» É sobre o namoro de um poeta da minha terra,
Viriato da Cruz, que foi morrer à China. As melhores aguarelas de quitandeiras
são de um pintor da minha terra, Albano Neves e Sousa, que foi morrer a
Salvador da Bahia. Nada que as minhas laranjas desconheçam, o viajar.
A
minha mãe trazia as laranjas para a sala, para o centro de mesa, como flores.
Na parede, sobre o frigidaire (não ponham maiúscula, era uma coisa, imperial e
branca) havia a pintura A Última Ceia. Só mais tarde soube que não era o
original, de Da Vinci, era uma cópia porque havia laranjas à mesa, frente a
Jesus, Pedro e Filipe – sempre pensei que este se levantara para apanhar uma.
Mas não, Filipe protestava por Jesus ter dito que nessa noite alguém o iria
trair. E, em todo o caso, no tempo de Jesus ainda não havia laranjas em
Jerusalém.
As
minhas laranjas são pequenas, casca fina e dulcíssimas. Não são Valência, como
as da Florida que fazem sumo em pacote, nem Navel, como as dos supermercados,
sem semente e com umbigo, como o nome indica em inglês. Não estou a dizer que
estas não são boas, estou a dizer que são outra coisa. As minhas têm sementes,
como devem ter os frutos sem laboratório, chamam-se do Loge e já não há. Trato
as que há homenageando as minhas. Mordo a laranja e descasco com os dedos – a
casca grossa não merece o trabalho de cinzelador com que o meu pai fazia uma
espiral sem quebrar.
Ah,
e ao comer chamo-lhe sempre baixinho – porque «do Loge» é muito íntimo –
«orange», porque em francês vem de ouro. Que raio de ideia chamarem laranja a
um fruto cor de laranja que é amarelo (ou, pelo menos, devia ser).
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